Livro recupera pesquisas, poemas e textos que mostram como o escritor modernista se preocupou com as questões raciais do País

“Mas se formos auscultar a pulsação mais íntima da nossa vida social e familiar, encontraremos entre nós uma linha de cor bastante nítida, embora o preconceito não atinja nunca, entre nós, as vilanias sociais que pratica nas terras de influência inglesa. Mas, sem essa vilania, me parece indiscutível que o branco no Brasil concebe o negro como um ser inferior” (Trecho do texto “Linha de Cor”, escrito por Mário de Andrade em 1939) – Foto: Acervo/Estadão via BMA
Já se passaram 80 anos da morte de Mário de Andrade (1893-1945), mas essas oito décadas ainda não se mostraram suficientes para esgotar as descobertas a respeito do alcance dos seus interesses e da abrangência da sua produção. O mais recente achado trata da preocupação de Mário com os aspectos culturais, históricos e antropológicos da população e da cultura negras do Brasil.
O livro O Losango Negro – Mário de Andrade, Intérprete do Brasil, de Angela Teodoro Grillo, parte de documentos do escritor preservados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Em contato com esse material desde sua iniciação científica, chegando até o pós-doutorado, Angela acabou encontrando um dossiê composto pelo próprio Mário intitulado Preto. Nele, notas de trabalho e versões de textos foram reunidos desde o final dos anos 1920 até a morte do escritor, representando cerca de 20 anos de pesquisas sobre a questão do negro no País.
A partir desse material, colocado em diálogo sobretudo com a produção lírica de Mário, Angela tenta mostrar a importância que o autor deu para o tema e sua originalidade, tanto na criação literária quanto na crítica e nos estudos folclóricos e culturais. “Mário de Andrade reconhece que, em diferentes instâncias da sociedade brasileira, o negro pode ter a voz tolhida e a ascensão social prejudicada pelo olhar discriminatório”, escreve a pesquisadora.
No Brasil que elaborava seu discurso oficial de democracia racial e varria o preconceito para debaixo do tapete, a voz de Mário surgia praticamente isolada. Para o autor de Macunaíma, contudo, não se tratava apenas de uma questão social. O assunto estava em sua própria pele, já que Mário tinha avós negras e herdou traços mestiços. Não à toa, em A Meditação sobre o Tietê, poema de Lira Paulistana (1945), Mário se declarava um “bardo mestiço”.
“Neto de mulheres negras com homens brancos, entre os filhos, Mário herda a pele mais escura; adulto, nem partidário das associações negras nem assimilado, ocupa um espaço de prestígio intelectual”, escreve Angela. “Sua origem contribui para edificar uma obra artística e intelectual com uma singular interpretação do Brasil, sustentada pela percepção crítica tanto de quem estuda seriamente como de quem vive consequências do racismo em um País pouco inclinado a problematizar violências sociais.”
Conforme conta a autora, desde Pauliceia Desvairada (1922), uma das obras fundadoras da poesia modernista no País, até Lira Paulistana, livro póstumo que reúne alguns de seus últimos poemas, Mário escreveu versos fazendo referência ao negro. Algumas vezes como o próprio sujeito, outras como observador atento, mas sempre procurando diálogo com a sociedade brasileira.
Um exemplo disso aparece no primeiro capítulo do livro, em que Angela comenta a presença do tema em poemas de Pauliceia Desvairada, Losango Cáqui (1926), Clã do Jabuti (1927) e Lira Paulistana. Uma das passagens mais interessantes aqui é a apresentação de quatro versões do poema Garoa do Meu São Paulo, publicado em Lira Paulistana. O acervo preservado no IEB guarda as várias versões do texto, documentando as alterações e correções feitas por Mário ao longo de sua elaboração.
A partir delas, Angela analisa como o autor foi transformando o sentido do poema durante sua criação. Se na primeira versão Mário escrevia “Mas eu fico sempre negro e pobre” e na segunda chegava em “Mas eu fico negro e pobre”, acabou abandonando totalmente a linha na versão final, substituindo-a por “Garoa, sai dos meus olhos”.

Folha de caderneta com versão do poema “Garoa do Meu São Paulo”, manuscrito de “Lira paulistana”, de Mário de Andrade – Foto: Reprodução/livro “O Losango Negro”

Datiloscrito com versão de “Garoa do Meu São Paulo”, manuscrito de “Lira Paulistana”, de Mário de Andrade, com anotações autógrafas – Foto: Reprodução/livro “O Losango Negro”
“Sua primeira estratégia foi colocar-se junto aos negros e pobres, mas preferiu menos acentuar a condição dos desfavorecidos e mais denunciar a hipocrisia”, analisa Angela no livro. “Em outras palavras, o problema social não vem dos negros e pobres, mas dos brancos e ricos.”
No segundo capítulo, o centro das atenções da pesquisadora é o poema Reconhecimento de Nêmesis, escrito em 1926 mas publicado apenas em 1930, em Remate de Males. Nele, o eu lírico, adulto, é confrontado com um menino que representa sua própria infância. Como a Nêmesis da mitologia, que surge para tirar a alegria das pessoas, a criança aparece para trazer a dor causada pela violência do racismo.
Mão morena dele pousa
No meu braço… Estremeci.
Sou eu quando era guri
Esse garoto feioso.
Eu era assim mesmo… Eu era
Olhos e cabelos só.
Tão vulgar que fazia dó.
Nenhuma fruta não viera
Madurando temporã.
Eu era menino mesmo,
Menino… Cabelos só,
Que à custa de muita escova
E de muita brilhantina,
Me ondulavam na cabeça
Que nem sapé na lagoa
Se vem brisando a manhã.
(trecho de Reconhecimento de Nêmesis)
“Nesses versos de Mário de Andrade, a figura da criança, que ele foi, volta em forma de dor, provocada pela violência do racismo sofrido ao longo da vida e que se torna patente em momentos de rejeição e violência”, escreve a pesquisadora. “O racismo explica os caminhos fechados pelos quais o eu poético procura percorrer.”
Mário também se manifestou a respeito da condição dos negros fora do Brasil. É o que Angela discute no quinto capítulo do livro, quando analisa o poema Nova Canção de Dixie, composto em 1944 e publicado postumamente no jornal Correio Paulistano, em fevereiro de 1946. Nele, o poeta critica a segregação racial nos Estados Unidos e ironiza a hipocrisia de um país que brada ideais democráticos mas convive cotidianamente com o racismo.
“O poema traz uma reflexão crítica de um eu lírico que sofre ao mesmo tempo que expande a denúncia das consequências do racismo da esfera individual para a coletiva e transnacional”, explica a autora. Partindo de uma música do século 19 composta por um branco e que se tornou uma espécie de hino não oficial dos Estados Confederados da América durante a Guerra de Secessão (1861-1865), Mário inverte seu sentido, analisa a pesquisadora. O “bardo mestiço” pede a liberdade a partir da ironia e da recusa, negando-se a ir para a “Terra da Linha de Cor”.
Mas porque tanta esquivança!
Lá tem Boa Vizinhança
Com prisões de ouro maciço;
Lá te darão bem bom lanche
E também muito bom linche,
Mas se você não é negro
O que você tem com isso!
No. I’ll never never be
In Colour Line Land.
(trecho do poema Nova canção de Dixie)
Não é apenas a crítica, contudo, que interessa ao modernista. No conjunto que forma os Poemas da Negra, assunto do terceiro capítulo do livro, Mário subverte as convenções poéticas do seu tempo. Angela aponta como o autor, após ampla pesquisa literária e etnográfica a respeito da produção de imagens da mulher negra – abordada de maneira depreciativa ou essencialmente sexualizada –, rompe com as caracterizações típicas da chamada “poesia do senhor de engenho”.
Divididos em 12 partes, os Poemas da Negra narram o encontro de uma noite do eu lírico com uma prostituta na região do mangue de Recife. Mário se afasta das abordagens preconceituosas e reducionistas a respeito da mulher negra para enaltecê-la e valorizá-la como merecedora de seu amor. Um tratamento que a poesia até então só reservava para as mulheres brancas. “O poeta transgride, ainda, ao lançar mão de um tom elevado no conjunto; pelo discurso alto, retira a mulher da condição de um ofício julgado socialmente como desprezível e a transforma na musa do amor pleno de sua obra poética”, aponta Angela.
Você é tão suave,
Vossos lábios suaves
Vagam no meu rosto,
Fecham meu olhar.
Sol-posto.
É a escureza suave
Que vem de você,
Que se dissolve em mim.
Que sono…
Eu imaginava
Duros vossos lábios,
Mas você me ensina
A volta ao bem.
(trecho do poema III de Poemas da Negra)
Além da análise da lírica de Mário de Andrade, a autora reserva espaço ainda para falar de certas produções, pesquisas e iniciativas nas quais o estudioso demonstrou suas visões e preocupações a respeito da população e da cultura negras. A pesquisadora aborda, por exemplo, os planos para as comemorações do Cinquentenário da Abolição, evento idealizado por Mário quando era diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo.
Conforme escreve Angela, as comemorações planejadas por Mário se estenderiam de 27 de abril a 13 de maio de 1938 e envolveriam uma série de setores da municipalidade: Diretoria de Expansão Cultural, Divisão de Turismo e Divertimentos Públicos, Parques Infantis, Discoteca Pública e ainda a Sociedade de Etnografia e Folclore. A programação teria conferências, concursos musicais, concertos, exposição iconográfica, danças e a apresentação da Congada de Atibaia, terminando na coroação do rei negro, pelo prefeito, na Praça da Sé.
Tal era a amplitude da proposta que o ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, chegou a solicitar a Mário um plano também para as comemorações na então capital do País, o Rio de Janeiro. Mas suas ideias acabaram não prosperando em solo carioca. E pouco do seu projeto para São Paulo também foi adiante, já que Mário acabou substituído na direção do Departamento de Cultura, com a mudança do prefeito Fábio Prado por Prestes Maia, no meio dos preparativos para a data.
Além das análises apresentadas pela pesquisadora, O Losango Negro traz ainda, como um dossiê, uma série de textos escritos pelo próprio Mário de Andrade em que o autor trata da cultura afrobrasileira. Entre eles estão os Estudos sobre o Negro, que incluem o ensaio-conferência Cinquentenário da Abolição e os textos A Superstição da Cor Preta, de 1938, e Linha de Cor, de 1939.
Angela também inclui a transcrição de alguns manuscritos presentes no acervo do IEB, como o plano para a comemoração do Cinquentenário da Abolição na cidade de São Paulo. Encerrando o volume, a pesquisadora traz a conferência A Expressão Musical dos Estados Unidos, elaborada por Mário em 1940 e na qual ele analisa a música estadunidense, salientando de maneira original para a época a influência da cultura negra naquele país.
Mário dizia que era “trezentos, trezentos-e-cincoenta”. Aparentemente, os anos vêm revelando que ele estava errado. Esforços de pesquisa como o de Angela mostram que Mário de Andrade foi setecentos, oitocentos, novecentos… E não é possível saber ao certo aonde essa conta ainda vai chegar.
O Losango Negro – Mário de Andrade, Intérprete do Brasil, de Angela Teodoro Grillo, Editora Cobogó, 336 páginas, R$ 96,00

Capa do livro escrito pela pesquisadora Angela Teodoro Grillo – Foto: Reprodução/Editora Cobogó